A armadilha do PEC.
A exigência por parte do Governo de que o PEC seja discutido no Parlamento constitui uma clara armadilha política estendida à oposição.
Sendo a elaboração do PEC da competência do Governo, não há qualquer justificação para que o mesmo seja submetido ao Parlamento. O Governo não pode andar todos os dias a protestar contra os Governos de Assembleia e depois, a pretexto de pretender maior consenso, exigir que a Assembleia sufrague as medidas governamentais que propõe. E muito menos se aceita que o Presidente proponha aos outros partidos que apresentem medidas para melhorar o PEC, assim contribuindo para diluir a responsabilidade do Governo no mesmo.
E em relação às medidas constantes do PEC que são da competência da Assembleia (como as de natureza fiscal) é prematuro que as mesmas sejam discutidas neste momento. O princípio da anualidade do orçamento exige que seja todos os anos, na altura da sua aprovação, que a Assembleia se pronuncie sobre o mesmo. Aprovar uma resolução que comprometa neste momento a Assembleia relativamente a futuros orçamentos é absolutamente inaceitável, e os deputados não deveriam alinhar nesta proposta.
Os partidos da oposição demonstrarão uma grande ingenuidade política se aceitarem votar e viabilizar este PEC. Para todos os efeitos, ficarão amarrados à política económica e financeira deste Governo até 2013, vindo depois a ser responsabilizados eleitoralmente pelo desastre previsível a que essa política conduzirá.
No caso do PSD, a situação é particularmente grave pois terá um novo líder no dia seguinte à votação do PEC. Só por absoluto desnorte político é que se compreende que os deputados do maior partido da oposição aceitem pacificamente ser conduzidos por uma direcção cessante a votar um documento que comprometerá irremediavelmente o seu partido até 2013. Será que a anterior direcção acha que ainda não fez suficiente mal ao partido?
Neste momento, a única atitude que salvaguarda o futuro do PSD é o voto contra este documento. O Governo que assuma as responsabilidades da situação que criou, e para a qual nunca pediu qualquer apoio da oposição. Se o Governo quer que os partidos da oposição governem, o que deve fazer não é apresentar um PEC ao Parlamento. É antes apresentar ao Presidente da República a sua demissão.
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A contestação ao Presidente do Parlamento.
O Presidente da Assembleia da República é em termos protocolares a segunda figura do Estado. Não é por isso aceitável que um Secretário de Estado se dirija ao Parlamento sem referir o seu Presidente, e insista na omissão depois de ter sido advertido. Em qualquer outro país europeu já estaria demitido por exigência do próprio Parlamento. Em Portugal, pelo contrário, é estrondosamente aplaudido pelo grupo parlamentar que apoia o Governo. Pelos vistos, esses deputados acham que merece aplauso o desrespeito ao seu próprio Presidente. Não vêm que ao atingir a dignidade do Parlamento, que o Presidente representa, esse acto atinge a sua própria dignidade enquanto membros do Parlamento.
A atitude desrespeitosa para com Jaime Gama voltou, porém, a ser assumida pelos deputados do PS, quando este - e bem - não atendeu um protesto de José Lello contra os fotógrafos que pretendiam fotografar as páginas que ele estava a ver no seu computador. Aí os referidos deputados encerraram ruidosamente os seus computadores, fazendo lembrar os "levantamentos de rancho" tradicionais. O ridículo da atitude, e do que a motiva, é absolutamente extraordinário, mas não deixa de demonstrar uma séria contestação a Jaime Gama, vinda do seu próprio grupo parlamentar.
Ora, uma contestação ao Presidente do Parlamento, por parte dos deputados que apoiam o Governo, é algo a que ainda não tínhamos assistido na nossa democracia. Lembro-me da reacção de alguns deputados a afirmações infelizes de Vasco da Gama Fernandes, ou de ter sido muito contestada a eleição de Oliveira Dias. Mas não me lembro de alguma vez ver a sua autoridade como Presidente do Parlamento ser posta em causa pelos deputados. Estamos assim a assistir a algo novo.
À descredibilização do Governo e à falta de confiança dos portugueses no funcionamento do sistema de justiça soma-se assim agora o descrédito do Parlamento. É muito grave que tal aconteça depois de o Presidente da República ter, na entrevista televisiva que deu, remetido para o Parlamento a resolução da crise política. A crise está assim para ficar e não parece haver solução à vista.
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No rescaldo do Congresso.
O Congresso do PSD do passado fim-de-semana, com a disparatada aprovação da já denominada "lei da rolha", pode trazer enormes prejuízos à sua recuperação política, que é absolutamente necessária a Portugal. Outra coisa, porém, não seria de esperar de um Congresso convocado sem qualquer justificação, que decorreu em plena campanha eleitoral para as directas, e que era claramente dirigido contra Passos Coelho.
Não havia efectivamente qualquer justificação para convocar um Congresso extraordinário não electivo nas vésperas de outro Congresso electivo. Os Congressos destinam-se a preparar a acção política dos partidos e para tal exige-se saber quem os lidera em determinado momento. Não se destinam a resolver estados de alma nem a funcionar como sessões de terapia colectiva. Convocar um Congresso com esse fim é claramente contraproducente e enfraquece o Partido.
Da mesma forma, não se convocam Congressos para encontrar alternativas às candidaturas em presença. O PSD não precisa de figuras tutelares que lhe indiquem caminhos que elas próprias não foram capazes de encontrar quando lhes coube a vez de assumir a liderança. E não vale a pena apelar à segunda vinda de Cristo, depois de ele constantemente referir que prefere ser venerado no céu a descer à terra.
E muito menos faz sentido convocar Congressos durante as eleições directas. A campanha eleitoral em curso deve dirigir-se a todos os militantes e não apenas aos delegados, pois é com o voto de todos que vai ser eleito o novo líder.
Quanto à referida "lei da rolha", a ideia que lhe está subjacente de responsabilizar a expressão da opinião de alguns militantes pela derrota do Partido não passa de uma tentativa de elidir as responsabilidades óbvias que as direcções anteriores têm nessas derrotas, resultado de opções políticas desastrosas. Em lugar de assacarem culpas a outros, seria preferível procurarem as suas próprias. Mas para isso não é preciso um Congresso.
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A entrevista de Cavaco Silva.
A entrevista de Cavaco Silva constituiu uma enorme desilusão para quem esperava outra atitude do Presidente perante a evidente degradação da confiança nas instituições, a que temos vindo a assistir. A imagem que Cavaco Silva transmitiu foi a de um Presidente com poderes altamente limitados, a quem o PGR que nomeia só informa do que entende, que nada pode fazer contra o Governo enquanto ele tiver a confiança da Assembleia, e que considera positivo nunca ter exercido o poder de dissolução ou mesmo vetado diplomas governamentais.
Sucede, porém, que não é esta a imagem que os portugueses têm dos poderes do Presidente no nosso sistema constitucional, ao fim de quase 35 anos de vigência da Constituição, nem tal corresponde ao que se esperaria de Cavaco Silva como Presidente.
Num ensaio sobre o semipresidencialismo, Maurice Duverger escreveu que "não se elege um Presidente por sufrágio universal para que ele inaugure exposições, mas antes para agir". Precisamente por esse motivo, nunca nenhum anterior Presidente deixou degradar a situação política a níveis inaceitáveis, mesmo quando o Governo tinha a confiança da Assembleia. É um facto que nunca mais nenhum Presidente demitiu o Governo após a revisão constitucional de 1982, embora o Presidente seja o único juiz sobre o preenchimento dos requisitos constitucionais para tal. No entanto, várias vezes os anteriores Presidentes convocaram eleições, havendo uma maioria na Assembleia disposta a apoiar um Governo. Remeter totalmente para a Assembleia a questão da sobrevivência do Governo não é por isso o que a maior parte das pessoas espera do Presidente da República em Portugal.
E não é o que se esperaria de Cavaco Silva que, com a sua proposta de cooperação estratégica, proclamou logo na campanha eleitoral que iria ser um Presidente interventivo. Os seus opositores, com destaque para Mário Soares, diziam que tal proposta iria ser um perigo para o sistema constitucional vigente, devido aos conflitos que geraria. Mas Cavaco Silva foi eleito precisamente porque os eleitores apreciam um Presidente que tenha intervenção nas questões mais graves da vida nacional.
Cavaco Silva disse no fim da entrevista que esperava ter um último ano de mandato semelhante aos anteriores. Não me parece que tal venha a suceder. E será um sério erro Cavaco Silva não tomar consciência de que a degradação da situação política pode reclamar uma intervenção sua.