O avalista dos PEC.
Estas declarações de Passos Coelho confirmam o que sempre pensei: que o PSD acabará por viabilizar o Orçamento para 2011. Efectivamente, quem se atirou de cabeça para o disparate que foi a viabilização do PEC 2 assumiu definitivamente o papel de avalista dos PEC, que é uma qualidade da qual não se sai com facilidade. O PSD bem pode protestar publicamente contra as medidas anunciadas pelo Governo, mas enquanto todos os outros partidos da oposição já declararam ir votar contra o orçamento, as declarações do PSD são absolutamente contemporizadoras e deixam antever a sua abstenção no Orçamento.
Está agora em exibição em Lisboa o filme Wall Street - Money Never Sleeps, de Oliver Stone. Nesse filme há duas afirmações que me parecem emblemáticas da situação que estamos a atravessar. Uma delas diz que a irracionalidade pode ser definida como a repetição constante do mesmo comportamento, esperando que alguma vez ele leve a um resultado diferente. Outra diz que emprestar cada vez mais dinheiro a um sobreendividado é colocá-lo em situação de risco moral, uma vez que ele continuará sempre a gastar acima das suas possibilidades.
Este constante apoio do PSD aos PEC deste Governo é tipicamente um comportamento irracional. Efectivamente, não estou a ver que os mesmos protagonistas que deixaram o défice chegar a 9,3% do PIB tenham a mínima capacidade para o ir agora reduzir, apesar dos sacrifícios que pedem aos cidadãos. Especialmente quando continuam a insistir no TGV e no novo aeroporto de Lisboa. As novas receitas fiscais só servirão assim para continuar a estimular os gastos desnecessários no sector público.
Será portanto de esperar que depois do PEC 3 venham aí os PEC 4, PEC 5 e se calhar até o PEC 10, todos eles viabilizados pelo PSD. Algum dia chegará, no entanto em que alguém terá que dizer "basta" em relação a isto. Ser "silent partner" do Governo não é propriamente a melhor forma de fazer oposição. Por muito que os outros elogiem o "sentido de responsabilidade".
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Lembram-se?
O Ministro das Finanças que temos hoje é o mesmo que no Orçamento para 2009, no auge da crise financeira internacional, decidiu aumentar os funcionários públicos em 2,9%, uma medida claramente com fins eleitoralistas. Nessa altura, para justificar esse aumento, disse o seguinte: "temos umas contas públicas sãs, reduzimos como nunca foi feito o défice público". Logo em Abril de 2009, o Governador do Banco de Portugal, pouco antes de deixar o cargo, já dizia ser "óbvio que o aumento da função pública é demasiado elevado".
Passou pouco mais de um ano e o descalabro orçamental foi total, apesar dos PEC I e II. Neste momento, nada mais resta ao Governo senão voltar a aumentar brutalmente os impostos e cortar os salários da função pública. O que me espanta é que sejam os mesmos que tanto erraram que pedem que os deixem voltar atrás no que fizeram, dizendo que agora é que vão fazer bem. Não existe a figura da responsabilidade política neste país?
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...
Confesso que neste momento acho Portugal um país completamente às avessas, sendo difícil alguma racionalidade nas discussões a que todos os dias assistimos. Em lugar em de se analisar friamente os problemas, montam-se autênticas encenações mediáticas, e lançam-se para o espaço público justificações que parece que pretendem tomar os outros por parvos.
Um exemplo do que estou a falar é a encenação montada a propósito do relatório da OCDE. Qualquer pessoa com algum conhecimento nesta área sabe que os relatórios da OCDE são estudos técnicos elaborados em concertação com os Governos, e que servem muitas vezes de argumentário aos Governos. Não há nada que estranhar neste âmbito. Quando Cavaco Silva era Primeiro-Ministro e o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional a sua proposta de reforma laboral, ele também fez uma comunicação ao País a justificar essa proposta com um relatório da OCDE a exigir maior flexibilidade laboral em Portugal, que exibiu na televisão. Não são de estranhar por isso as suas declarações de louvor à OCDE. O Tribunal Constitucional da altura é que se esteve nas tintas para o relatório e não deixou de declarar essa reforma laboral como inconstitucional. Como se vê, as posições da OCDE são recomendações aos Estados que têm o valor que estes decidirem atribuir-lhe.
O que já é, porém, completamente inédito é o titular de um alto cargo da OCDE deslocar-se a um Estado-Membro, efectuando uma forte pressão sobre o líder da oposição no sentido de este aprovar o Orçamento. Trata-se de uma claríssima ingerência nos assuntos internos de um País soberano e duvido que em algum outro Estado-Membro essa atitude fosse recebida com a brandura com que foi em Portugal. E devo dizer que me parece essa atitude contraproducente, pois a reacção natural a tomar é haver ainda mais intransigência na negociação do Orçamento de Estado. Não é com encenações mediáticas que se resolvem as divergências, mas sim através de negociações sérias.
Outro exemplo de encenação mediática é o facto de o Presidente ter chamado os partidos a Belém, tentando que se entendessem sobre o Orçamento de Estado. Como o Presidente não tem constitucionalmente qualquer competência nesta matéria, não se percebe o sentido útil da convocatória. O que me espanta é que não haja nenhum líder partidário a dizer o que se impõe: o Orçamento é uma competência da Assembleia e só deve ser discutido na Assembleia, não na Presidência da República. Se o Senhor Presidente está preocupado com a sua eventual não aprovação, dirija uma mensagem à Assembleia, apelando a essa aprovação. Agora, o respeito pelas competências do Parlamento deve evitar que este assunto seja discutido noutro órgão de soberania. Mas, pelos vistos, os líderes partidários não têm esse respeito pelo Parlamento.
Aliás, uma demonstração do descrédito do Parlamento é a iniciativa de alguns deputados do PSD aqui denunciada, de criar um instituto público para "a promoção e valorização dos bordados do Tibaldinho", naturalmente a financiar através das transferências do Orçamento de Estado. Os deputados não têm consciência da situação dramática que o País atravessa para proporem a utilização de fundos públicos para fins deste tipo? E dizem o emissário da OCDE e o Ministro das Finanças que não há espaço para cortar na despesa. Aposto que qualquer cidadão comum com uma tesoura na mão encontraria inúmeros institutos públicos, empresas municipais, observatórios e quejandos criados para tratar de assuntos tão relevantes como os bordados do Tibaldinho. É só começar.
Mas ninguém faz uma discussão séria, baseada em estudos credíveis, e às mais vezes no mais elementar bom senso, para resolver os problemas. O debate faz-se no espaço mediático, em que, em lugar de argumentos sérios, se apresentam observações ridículas. Um exemplo do que estou a referir é este post de Vital Moreira que estranha haver tanta gente a indignar-se contra a eliminação das deduções fiscais. E pergunta "onde está a voz daqueles que, por terem baixos rendimentos e não pagarem IRS, nem sequer podem descontar fiscalmente a consulta num dentista ou a sua parte nos medicamentos de que necessitam?". É a realidade de pernas para o ar. As deduções fiscais, que são abatimentos ao imposto, são injustas porque não abrangem os que não pagam imposto. E que estranho os que não pagam qualquer imposto não se queixarem por os outros, com as deduções fiscais, pagarem um pouco menos de imposto. Mas o nosso querido Governo, com o apoio de Vital Moreira, já vai corrigir essa grande injustiça. Os que pagam um pouco menos de imposto vão passar a pagar a totalidade, que é para não se armarem em privilegiados. Já os que não pagam nada de IRS também vão passar a pagar, pois também não é justo que ainda tenham dinheiro para gastar em dentistas e medicamentos. O que é justo é o Estado arranjar mais dinheiro para gastar à tripa forra.
Acho que seria mais lógico o Governo e os seus apoiantes dizerem o seguinte: Infelizmente estoirámos todo o dinheiro e precisamos de arranjar mais algum para continuar a estoirar. Por esse motivo, vamos fazer de Xerife de Nottingham e sacar impiedosamente ainda mais impostos a todos os que encontrarmos pelo caminho, independentemente das suas necessidades e estado de saúde. A justificação tinha o mesmo valor que aquela que tem sido apresentada para eliminar as deduções fiscais. Mas pelo menos tinha a vantagem de não procurar fazer de nós parvos.
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O relatório da OCDE, a Constituição e as deduções fiscais.
A euforia com que aqui e aqui se encara um relatório banalíssimo da OCDE sobre Portugal, só porque converge com algumas propostas do Governo mostra bem a ausência de argumentos que este Governo tem para resolver a crise. Faz-me lembrar os livros de banda desenhada de Walt Disney, que li na minha infância, em que os sobrinhos do Pato Donald possuíam um manual do escoteiro que tinha resposta para tudo, fosse qualquer fosse a pergunta. Pelos vistos, agora o manual do escoteiro deste Governo (ou dos seus apoiantes) passou a ser o relatório da OCDE.
Só que o referido relatório poderia ter sido escrito por La Palisse, debitando verdadeiros lugares comuns sobre as formas de equilibrar o défice orçamental e fazendo apreciações que qualquer pessoa há muito sabe sobre a estrutura da nossa economia. O facto de o Secretário-Geral da OCDE ter vindo a Portugal apresentá-lo mostra bem sobre a pressão que existe para aprovar o orçamento. Já disse que estou convencido que terá efeito e que o orçamento acabará por ser aprovado. Mas seguramente o País não ficará melhor e se tornará um país mais injusto.
E já agora chamo a atenção para a Constituição. No verdadeiro coro que existe (esse sim) no sentido de eliminação dos benefícios fiscais (todos, incluindo os dos doentes e deficientes!) já alguém se lembrou de ler o art. 104º, nº1, que manda que a tributação do rendimento pessoal tenha em conta "as necessidades e os rendimentos do agregado familiar". Hão-de-me explicar como é possível cumprir essa disposição constitucional, eliminando as deduções das despesas com a saúde (e já nem falo da educação). Mas a verdade é que também já se deixou passar o PEC II, com um imposto escandalosamente retroactivo, que o PSD em nada achou estranho, e o Presidente da República se limitou a desencadear uma tímida fiscalização sucessiva, que o Tribunal Constitucional remeterá para as calendas gregas.
Muito mal estão aqueles que acreditam nas garantias dos contribuintes que a Constituição consagra. Hoje, vigora uma verdadeira sangria fiscal, que não poupa ninguém, nem mesmo os mais desfavorecidos, e que já tornou a Constituição autêntica letra morta. Neste momento, ela vale menos que qualquer banal relatório da OCDE. Resta saber até quando os contribuintes portugueses terão que tolerar isto.
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Os doentes que paguem a crise III
Vital Moreira continua na sua defesa implacável da fúria fiscal deste Governo que, para satisfazer a sua sede despesista, não hesita em atingir os mais desfavorecidos, no caso os doentes, eliminando a dedução fiscal das despesas de saúde. Agora, imagine-se, lembra-se de pedir uma declaração de interesses a todos os que estão contra esta voracidade fiscal, indicando o que pagam ou o que deduzem de impostos.
Claro que no caso de Vital Moreira não é preciso declaração de interesses nenhuma. Só espíritos maléficos poderiam pensar que a sua concordância absoluta com tudo o que o Governo PS propõe teria alguma coisa a ver com o facto de ter sido escolhido para liderar a lista do PS ao Parlamento Europeu e em consequência eleito deputado europeu, apesar de ter levado o PS nessas eleições à maior derrota eleitoral dos últimos anos. A propósito, os nossos deputados europeus também reduziram os seus principescos salários, à semelhança dos outros políticos nacionais, ou a crise não passa por eles?
Mas posso dar a Vital Moreira um exemplo das referidas pessoas com interesse próprio na não eliminação da dedução das despesas com a saúde. É que recebi cópia de um e-mail que uma associação que luta contra uma doença crónica altamente incapacitante enviou ao Governo e aos Grupos Parlamentares, protestando contra a proposta de eliminação dessas deduções. Desse e-mail retiro estas frases:
"Um cidadão “normal” não tem a necessidade de ter meios compensatórios e encargos adicionais que os doentes crónicos / deficientes têm no seu dia-a-dia (médico da especialidade, psiquiatra, fisioterapia, transportes, medicamentos, ajudas técnicas, cadeira de rodas, elevador, obras de adaptação, …)"
Na verdade, as pessoas que têm uma doença crónica / deficiência não se importariam de trocar os benefícios fiscais pela sua doença crónica / deficiência.
Este governo quer retirar benefícios fiscais a quem mais precisa? Onde está a verdadeira igualdade de oportunidades? Um cidadão dito “normal” que ganhe o mesmo que um doente crónico / deficiente tem as mesmas despesas de saúde, obras de adaptação e outras quejandas que a deficiência / doença crónica arrasta consigo?".
Aí está um bom exemplo do referido "interesse próprio" na não eliminação das deduções fiscais na saúde. Só me pergunto como é que é possível no séc. XXI a insensibilidade do Estado ser tão grande, que não hesita em obter mais receita fiscal à custa do sofrimento dos mais desfavorecidos. Um pouco mais de decência, sff. E de humanidade, já agora.
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A "negociação" do Orçamento para 2011.
Concordo parcialmente com a análise de Pedro Pestana Bastos, aqui seguida por Luís Naves. Acho, no entanto, que o problema é mais profundo e resulta logo da negociação do PEC II. Na altura tive ocasião de escrever aqui que era o "mesmo Governo irresponsável, que deixou o país chegar a esta situação, que recebe do PSD uma carta em branco para realizar uma redução do défice através de um aumento brutal da carga fiscal, a ser realizado exactamente pelo mesmo Ministro das Finanças que decidiu esta elevação do défice". E acrescentei que o PSD iria pagar muito caro essa decisão, uma vez que "ficou colocado na posição de fiador desta política, assumindo as responsabilidades perante o eleitorado do desastre a que este Governo vai conduzir o país. E, como normalmente sucede aos fiadores, não deixará de vir a ser responsabilizado quando chegar a altura de pagar a factura".
Pois bem, a factura chegou. E quando ela chega, o normal é que o fiador e o devedor se comecem a desentender. O fiador acusa o devedor de afinal não ser confiável e o devedor responde que é o fiador que está a ter um comportamento impróprio. Trata-se de um comportamento padrão nestas alturas, mas nenhum dos dois acaba por conseguir no fim fugir às consequências do que acordaram.
É por isso, como já escrevi também aqui, que não acredito que o Orçamento para 2011 não seja aprovado. Efectivamente, os custos políticos para o PSD de deixar em gestão o Governo durante quase um ano a responsabilizá-lo constantemente pelo agravamento da situação económica, mais a disparatada revisão constitucional, tornam extremamente penosas as condições em que disputaria eleições. Por isso reitero que o então escrevi: "o erro cometido com a viabilização do PEC II atirou o PSD para um labirinto de onde dificilmente vai conseguir sair".
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Mais uma vez a revisão constitucional.
Em 22 de Maio passado escrevi aqui que discutir a revisão constitucional nesta época de crise seria como entrar em discussões bizantinas sobre o sexo dos anjos enquanto os Turcos atacavam Constantinopla. O que se passou posteriormente superou as minhas piores expectativas. As discussões bizantinas e quezílias internas em que o PSD se envolveu por causa da revisão constitucional não tiveram fim e levaram a que o discurso político do partido tenha atingido um tal grau de afastamento dos sentimentos do cidadão comum, que começa a ser altamente preocupante.
Um exemplo do que estou a falar é o artigo que Jorge Bacelar Gouveia publicou hoje no i, onde discute um tema que "alguns considerarão esotérico" (quem poderia pensar uma coisa dessas?), mas que ele próprio julga "nevrálgico na discussão constitucional que se avizinha". O "tema nevrálgico" é, imagine-se, discutir se o PSD pretende "rever ou mudar a Constituição?", em virtude de introduzir alterações nos limites materiais de revisão previstos no art. 288º, o que, segundo alguns autores, implicaria inconstitucionalidade da própria revisão constitucional.
Como se distingue então "mudar" e "rever"? O autor admite que embora "linguisticamente estes dois verbos possam ter zonas não totalmente distintas, não deixa de se reconhecer que o critério fundamental que servirá para operar a diferenciação fundamental entre estes dois conceitos radica no conceito de identidade constitucional (Verfassungskern): “rever” conserva esse núcleo essencial da Constituição, enquanto “mudar” o aniquila". Ou seja, uma situação tão grave como "aniquilar" a Constituição em lugar de a "rever" depende apenas de um "critério fundamental" que opera uma "diferenciação fundamental": "conservar o núcleo essencial da Constituição". O que é o "núcleo essencial da Constituição" o autor não define, mas refere que ele não passa pelos limites materiais de revisão. Por onde passará é um mistério, mas o autor assegura que não estará assim em causa uma "aniquilação" da Constituição. Ficamos mais tranquilos, pois já nos estávamos a imaginar na Venezuela de Hugo Chávez, que foi onde se "aniquilou" a Constituição anterior, que o novo Presidente proclamou moribunda ao mesmo tempo que a jurou.
Quem escreve isto foi membro da comissão de revisão constitucional do PSD, tendo saído a meio por divergências com o Presidente dessa comissão. Continua, porém, a afirmar que "a entrega do projecto de revisão constitucional do PSD teve muitos méritos, ao contrário do que se julga, embora alguns se tivessem mostrado descrentes das suas virtualidades substanciais ou mesmo questionado o momento da sua apresentação". De facto, só "os descrentes" não têm a fé necessária para ver os brilhantes méritos desta discussão. O povo incréu precisa de ser rapidamente iluminado e esclarecido. Duvido é que perceba alguma coisa com textos deste teor.
Quanto às consequências políticas da revisão constitucional para o PSD elas ficaram evidentes no Prós & Contras de ontem. No dia em que a dívida atingiu 6,4% de juros, e se soube que a despesa continua a aumentar, em lugar de ser o Governo a ter de dar explicações pela situação que criou, foi o PSD que esteve debaixo de fogo de todos os outros partidos por causa da revisão constitucional. Conforme disse Passos Coelho, isto está mesmo tudo às avessas.
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A regionalização
Há um único ponto em que me parece que vai haver acordo (senão mesmo unanimidade) na negociação para a revisão constitucional, que é em facilitar a regionalização na Constituição. Pouco interessa que a regionalização tenha sido rejeitada por referendo em Portugal com uma maioria esmagadora, e que neste momento estejamos sujeitos a um constrangimento orçamental sem precedentes. Quando o assunto é a criação de novos cargos políticos, com perspectivas de ocupação para uma série de gente, é fácil os partidos chegarem rapidamente a um acordo.
Vão assim ser naturalmente retirados todos os denominados "entraves à regionalização". A Constituição prevê um referendo obrigatório? O referendo passa imediatamente a facultativo, garantindo-se assim que nunca será feito. A Constituição exige a criação simultânea de todas as regiões administrativas? Retira-se já essa exigência, propondo a criação de uma região-piloto, em ordem a que os mais ansiosos possam rapidamente adiantar-se, criando a sua própria região.
O País precisa tanto de se regionalizar como um peixe precisa de uma bicicleta. Portugal tem a dimensão da região espanhola da Andaluzia e constitui materialmente uma região da Península Ibérica, que só não se integrou em Espanha porque os portugueses decidiram em 1640 que não queriam ser espanhóis. Alguém acha que se a Catalunha, a Galiza ou a Andaluzia se tornassem independentes criariam regiões no seu território? Portugal tem uma tradição municipalista e se há coisa que o referendo à regionalização demonstrou é que os municípios aceitam dificilmente atribuir o estatuto de capital da região a um município vizinho, preferindo relacionar-se directamente com a capital do País. A regionalização só servirá assim para a criação de novos cargos políticos, aumentando o sorvedouro de dinheiros públicos, numa altura em que é imperativo reduzir a despesa.
Conforme referi, parece-me, porém, que neste assunto vai haver acordo e que, para mal dos nossos pecados, lá se voltará à regionalização. Já começaram, no entanto, as quezílias sobre qual a região que deve assumir o papel de região-piloto, imaginando-se que haja muitos aspirantes a pilotos, o que normalmente tem como consequência que o veículo fique desgovernado. Eu tenho uma sugestão pessoal para a região-piloto: O Ilhéu da Pontinha. Tem a vantagem de ficar situado numa região autónoma, onde não será difícil implantar uma região administrativa. Tem fortíssimas aspirações independentistas, que suplantam largamente os intuitos regionalistas de outras regiões, e que poderão ser resolvidas conferindo-se ao Princípe D. Renato o cargo de Presidente da região administrativa. E, como só tem quatro habitantes, pelo menos teremos a garantia de que só serão criados quatro novos cargos públicos, o que não afectará tanto o orçamento português.
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Um erro político colossal.
Não sei se serei o único a achar que está a ser cometido um erro político colossal pelo PSD ao apresentar este projecto de revisão constitucional, o qual o partido vai pagar muito caro. Os argumentos que têm sido apresentados em sentido contrário não me convencem minimamente, mas acho útil proceder a uma análise dos mesmos, para se ver quem afinal tem razão.
Começo por apontar as consequências políticas desta iniciativa. Sempre que fala do projecto de revisão constitucional, o PSD vê-se obrigado a adoptar um discurso autojustificativo, explanando quais são as suas verdadeiras razões, e culpando o Governo ou os spin doctors pela má recepção que o projecto está a ter. Ora, essa situação desvia o PSD da sua principal tarefa de oposição, que é a de apontar o que está mal no país e de propor medidas concretas de solução dos problemas. Com isto o Governo fica aliviado de qualquer oposição, quando deveria estar constantemente a explicar as consequências da crise em que lançou o País.
Devido a esta proposta de revisão constitucional temos uma sensação de grande afastamento no discurso do PSD em relação às preocupações da maioria das pessoas: O desemprego sobe em termos colossais? Pois o PSD, em lugar de propor medidas de criação de emprego, discute se na Constituição se deve despedir por "razão atendível" ou "razão legalmente atendível". As populações do interior estão desesperadas com o encerramento das escolas e hospitais? Pois o PSD discute a eliminação da saúde e educação "tendencialmente gratuitas" na Constituição. A autoridade do Estado está em risco de colapso, com os polícias a ameaçar acampar no Terreiro do Paço por tempo indeterminado? Pois o PSD propõe que se volte a discutir o estafado tema da regionalização, que um referendo rejeitou por maioria esmagadora. Em consequência disto, a quebra nas sondagens é manifesta e terá tendência para se acentuar.
Já vi responder a isto com o argumento de que a revisão constitucional é boa em si mesma, e que por isso o PSD deve adoptá-la sem se preocupar com as sondagens. A última vez que vi um argumento semelhante foi quando Cavaco Silva decidiu abolir o feriado no Carnaval, salientando a justeza da medida face à situação do País. Na altura, o PSD caiu vinte pontos nas sondagens e nunca mais recuperou, mesmo tendo o feriado sido devolvido no ano seguinte. Em consequência, foi afastado do poder por vários anos e o próprio Cavaco Silva teve que adiar por dez anos o seu projecto presidencial. Há quedas nas sondagens que são absolutamente irreversíveis. Ora, não me parece que sirva de consolo ao PSD fazer uma revisão constitucional se em consequência ficar definitivamente afastado do poder.
Também já vi sustentar que o PSD, como partido reformista que é, tem que propor uma revisão constitucional e o PS acabará por ir atrás, à semelhança do que aconteceu em 1982 e 1989. As situações não são, porém, comparáveis. Em 1982 e 1989 o PSD governava, chefiando governos de maioria absoluta no horizonte da legislatura, pelo que podia negociar com o PS projectos de revisão constitucional sem quaisquer riscos eleitorais. Completamente diferente é a situação de o PSD estar na oposição e apresentar um projecto de revisão constitucional que traz custos eleitorais ao partido. O mais provável é que isso implique sacrificar a ambição de ser Governo.
Diz-se ainda que, tendo agora a Assembleia poderes de revisão constitucional, a revisão tinha que ser desencadeada. Quem defende isso não tem qualquer razão. A Assembleia não perde esses poderes pelo decurso do tempo. A inoportunidade da revisão é manifesta, não apenas porque prejudica a candidatura presidencial, mas porque distrai o País da condução da crise pelo Governo. Não seria mais inteligente o PSD preocupar-se antes em formar uma alternativa de Governo? Depois de chegar ao Governo, estaria livre para apresentar com muito mais eficácia e tranquilidade as alterações à Constituição que entendesse.
Apesar de tudo isto, ainda há quem ache que o PSD deve concentrar-se agora numa discussão de fundo sobre a revisão constitucional. Essa discussão de fundo só pode interessar ao Governo. O seu bloque oficioso já vai no 15º post a discutir a fundo a revisão constitucional do PSD e ameaça continuar. Ora, se isto interessa tanto ao Governo, é manifesto que não pode interessar ao PSD. O que é bom para os nossos adversários é mau para nós.
Finalmente há quem ache que a revisão constitucional acabará por cair no goto dos portugueses. É a posição de Carlos Abreu Amorim, neste excelente artigo cuja leitura recomendo, onde procura aplicar à revisão constitucional o slogan da Coca-Cola: "primeiro estranha-se, depois entranha-se". O que me parece é que, quando apresentamos um projecto de revisão constitucional que causa a maior estranheza ao eleitorado, corremos o risco de ter que entranhar Sócrates até 2013 e se calhar depois António Costa até 2017. Cavaco Silva, com o seu "princípio da melhoria incontestável", bem o lembrou.
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Como se faz um projecto de revisão constitucional
A apresentação do projecto de revisão constitucional do PSD é um curioso exemplo da forma como parece que agora se entende que deve ser apresentada uma proposta de revisão constitucional estruturante por parte do maior partido da oposição em Portugal.
1) Em primeiro lugar, nomeia-se uma comissão de revisão constitucional, a qual apresenta um projecto de tal forma polémico, que causa enormes custos eleitorais para o partido, permitindo a recuperação do Governo e beneficiando Manuel Alegre.
2) Confrontados com a situação, surgem membros da referida comissão de revisão constitucional a queixar-se de não terem sido ouvidos pelo ´seu Presidente, a quem atribuem a responsabilidade exclusiva do texto.
3) Em consequência desse facto, mudam os membros da comissão de revisão constitucional, indo o Presidente da comissão entregar ontem ao Presidente do PSD um novo texto.
4) Esse projecto é aprovado hoje pela Comissão Política Nacional em reunião que decorreu entre as 11h20m e as 15h00m.
5) Em seguida, o projecto é de imediato explicado aos deputados, solicitando-se a sua assinatura, em ordem a poder ser formalmente entregue amanhã.
Parece, portanto, que aos deputados, a quem cabe constitucionalmente a competência para apresentar formalmente o projecto de revisão constitucional, está reservada a tarefa singela de assinar de cruz o referido projecto.
Tudo isto só me lembra os tempos do PREC. Na altura também houve uma célebre noite em que se decidiu nacionalizar todas as empresas nacionais, tendo os diplomas surgidos prontos e assinados no dia seguinte. Por esse motivo, os seus autores receberam o cognome de "os homens sem sono", dada a enorme capacidade de produzir leis pela noite dentro. Pelos vistos, agora temos os "homens sem fome", que aprovam projectos de revisão constitucional à hora do almoço.
Da mesma forma, também no PREC foi inserida na Constituição pelos deputados toda uma série de artigos relativos ao Conselho da Revolução, impostos pelos militares ao abrigo do pacto MFA-Partidos, tendo os mesmos sido aprovados sem qualquer discussão. Tal não voltou a acontecer em nenhuma revisão seguinte, que resultaram sempre de negociações ao nível do Parlamento, não me lembrando que alguma vez tenha sido apresentado algum projecto de revisão constitucional em cuja elaboração os deputados não tenham participado. Dou por isso razão a Jorge Miranda, quando considera "grave e chocante" este processo. O que não percebo é como é que os deputados se sujeitam a exercer desta forma a mais importante competência que possuem.
Não conheço o conteúdo do projecto. Dizem-me, porém, que resolveu o problema da contestação à liberalização dos despedimentos, substituindo "razão atendível" por "razão legalmente atendível". Leio e julgo que se trata de uma brincadeira. Afinal, querem indicar que no projecto anterior estavam a pretender realizar despedimentos por "razões ilegais, mas atendíveis"?.