Viagem na irrealidade quotidiana.
A proposta de revisão constitucional do PSD é simultaneamente inútil e inoportuna. É inútil porque grande parte das propostas que são apresentadas nunca obterá a maioria necessária para ser aprovada. E é inoportuna porque irá deslocar o debate das grandes questões que efectivamente afligem os portugueses, aliviando o Governo da pressão a que estava a ser sujeito no sentido de ser responsabilizado pelo estado a que chegou o país.
A proposta de revisão constitucional apenas se poderia justificar devido aos constrangimentos que ainda existem na Constituição em relação à área laboral. Mas aí a proposta do PSD é extraordinariamente tímida. Substitui-se "justa causa" por "razão atendível" mas continua-se a garantir a segurança no emprego. Tenho muitas dúvidas que apenas com esta alteração o Tribunal Constitucional viesse a permitir alguma liberalização dos despedimentos.
Já em relação ao sistema de Governo a proposta não faz qualquer sentido, sendo absolutamente contraditória. Se alguém quiser ver o que isto daria, pense um pouco na história do nosso regime constitucional. Quando o PRD em 1987 derrubou o primeiro Governo do Prof. Cavaco Silva, naturalmente que a moção de censura seria "construtiva", o que obrigaria o Dr. Mário Soares a dar posse a um governo PS/PRD/PCP. Nunca teria havido em consequência eleições e nunca o PSD teria tido a sua maioria absoluta. Por outro lado, se fosse dado ao Presidente o poder de demitir livremente o Primeiro-Ministro, seria naturalmente o que Sampaio teria feito com Santana Lopes, o que obrigaria o PSD, se quisesse continuar a formar Governo, a escolher um Primeiro-Ministro mais do agrado do Presidente. É manifesto que por esta via se daria ao Presidente uma faculdade de ingerência inaceitável na vida interna dos partidos.
É óbvio que uma Constituição não é um objecto imutável, mas não se faz uma revisão constitucional apenas porque alguns constitucionalistas querem apresentar as ideias novas que têm sobre a matéria. A Constituição portuguesa já foi revista sete vezes, em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005, nada tendo hoje a ver com o seu paradigma original, salvo no preâmbulo, que não tem qualquer valor jurídico. O país não precisa de uma revisão constitucional permanente, pelo que colocar esta questão no debate político implica posicionar os políticos longe dos efectivos problemas nacionais.
Em Portugal os processos de insolvência aumentaram exponencialmente, surgindo todos os dias notícias do encerramento de mais empresas. O desemprego atingiu níveis históricos e os impostos dos que têm emprego aumentaram de forma brutal. Mas o que os partidos políticos estão a discutir é uma proposta de revisão constitucional, que provavelmente nunca será aprovada. Confesso que tenho dificuldade em perceber alguma racionalidade neste processo. Parafraseando Umberto Eco, acho que o Parlamento vai embarcar numa "viagem na irrealidade quotidiana".