O fim da soberania nacional.
As notícias que têm surgido todos os dias em torno da crise da dívida soberana e da ajuda que tem sido dada aos países europeus são uma demonstração evidente do colapso da soberania nacional dos Estados, com o evidente descrédito das suas instituições democráticas. Neste início do séc. XXI a soberania passou a ser apanágio dos credores internacionais que têm condições para aplicar verdadeiros Diktats aos Estados. E a proclamada ajuda externa não passa da substituição de uns credores por outros, os quais reclamam ainda muito maiores poderes de intervenção sobre o Estado devedor.
Vem isto a propósito da medida hoje anunciada de que a União Europeia planeia envolver-se na cobrança de impostos na Grécia. O lançamento e a cobrança de impostos são considerados desde as revoluções liberais como assuntos que só podem ser decididos pelos representantes do povo soberano no Parlamento. Foi este o resultado da proclamação no taxation without representation. Já se tinha visto, porém, dos acordos com a troika que o Parlamento perdeu margem para decidir sobre os impostos, já sendo estes determinados pelos negociadores. Agora só faltava dar o passo seguinte, que é serem eles próprios a cobrar esses mesmos impostos. Pelos vistos é o que vai suceder na Grécia, onde provalmente irão aparecer diligentes funcionários estrangeiros a cobrar os impostos dos gregos. O simbolismo é semelhante à conquista de um Estado, quando o Estado vencido era obrigado a pagar tributo ao vencedor.
O que, no entanto, devemos questionar é se este caminho de constante abdicação da soberania nacional conduz a algum lado. Na verdade, depois da Grécia, Irlanda e Portugal, parece que é a Eslovénia que se prepara para pedir ajuda externa. Na Grécia tornou-se evidente que a reestruturação da dívida está cada vez mais em cima da mesa. Na Irlanda já há ministros a referir que não há condições para regressar ao mercado e é preciso nova ajuda externa. E em Portugal, mesmo acabado de receber ajuda externa, o risco da dívida não para de disparar. Isto só significa que os mercados interiorizaram o que parece evidente: que um empréstimo com estes juros dificilmente conseguirá ser pago. Não haverá processo de terminar com esta caminhada para o abismo?
Autoria e outros dados (tags, etc)
O "acordo" com a troika.
A história do "acordo" com a troika arrisca a transformar-se num case study para as gerações futuras, a discutir amplamente em todas as Faculdades de Direito, onde os alunos vindouros se perguntarão como foi possível alguém subscrever um acordo nestas condições.
Há desde logo um sério problema de legitimidade na subscrição desse acordo, uma vez que é altamente controverso que um Governo de gestão tenha competência para esse efeito, e muito menos partidos de um Parlamento já dissolvido podem obrigar o Estado. A confusão entre o Estado e os partidos políticos assumiu o absurdo, havendo a originalidade de ter sido apenas o Governo a subscrever um "memorando de entendimento" e os dois outros partidos terem assinado uma espécie de "cartas de conforto" em relação ao mesmo.
Depois, coloca-se o problema de esse acordo ter sido subscrito, assumindo-se em nome do Estado uma série de obrigações, mas sem que se tenha acordado no essencial: qual a taxa de juro que iria ser paga pelo empréstimo? A mesma só foi fixada a posteriori em 5,5%, o que levanta as maiores dúvidas sobre se conseguiremos pagar esse empréstimo com a recessão em curso. E a pergunta óbvia que fica é se é aceitável celebrar um empréstimo em que se deixa a taxa de juro para posterior fixação unilateral pelo credor?
Depois parece que esse "memorando de entendimento" é tão vago que é susceptível de interpretações variadas, com as discussões que já surgiram sobre a redução da taxa social única, a liberalização das rendas ou a flexibilização dos despedimentos. Talvez por isso ninguém se lembrou de o traduzir para português e a campanha eleitoral tenha passado completamente ao lado deste tema.
Surge agora no entanto a notíca de que há duas versões do documento e que os partidos se comprometeram com uma versão que não conheciam. Uma vez que se comprometeram sem sequer saber a taxa de juro, nada disto me espanta. Mas acho inacreditável que, devido à urgente necessidade de dinheiro, a celebração de um acordo que é suposto vincular o Estado português ocorra desta forma. A imagem de Portugal no exterior fica pelas ruas da amargura.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Uma situação explosiva.
Aquilo a que estamos a assistir em relação aos juros da dívida soberana demonstra uma total falta de bom senso dos governantes da zona euro, que preferem tudo sacrificar a benefício dos credores internacionais, exigindo sacrifícios desmedidos aos seus próprios cidadãos. Mas parece que nenhum plano de austeridade é suficiente, uma vez que, como se lê aqui, os juros nunca cessam de disparar. Olhando para isto como jurista, continuo a achar que há algo de muito errado em todo este processo.
Uma das regras básicas do Direito é a de que todos os credores são iguais e que um devedor em situação de dificuldade financeira não pode favorecer nenhum credor em benefício de outros. Ora, sucede que todos estes planos de austeridade assentam em quebras de compromisso dos Estados perante os seus credores internos a benefício dos seus credores estrangeiros. O Estado primeiro quebra os contratos de trabalho que contraiu com os seus trabalhadores, reduzindo-lhes os salários. Depois quebra os compromissos assumidos perante os seus pensionistas, reduzindo-lhes as pensões para as quais descontaram a vida inteira. Mas considera intocáveis as dívidas em relação aos credores estrangeiros, os quais no entanto não deixam de exigir cada vez mais juros para emprestarem dinheiro.
O problema é que estes juros já têm um valor tão elevado que atingiram o nível da usura, o que juridicamente corresponde à exploração de um devedor em dificuldades. A situação no caso da Grécia atingiu o absurdo, com a cobrança de juros a 26%. No direito interno português qualquer pessoa consideraria usurária uma cobrança de juros de 26%. E o próprrio credor que emprestasse juros a 26% consideraria especulativa a possibilidade de receber o retorno do seu investimento, dada as evidentes dificuldades que o devedor terá em realizar os pagamentos. A questão é, no entanto, porque é que um Estado há-de honrar juros usurários enquanto cada vez procede a maiores cortes nos salários e pensões dos seus cidadãos? Como aqui se pode ler, a Grécia depois de ter há pouco mais de um ano ter cortado em vinte por cento esses salários e pensões, vê-se agora ainda obrigada a efectuar novo corte. Ora, não me parece que este tipo de medidas seja sustentável.
Não me espanta por isso o desalento que esta situação provoca na maioria das pessoas e as concentrações que têm ocorrido por toda a Espanha e que agora também se verificam no Rossio. Nós corremos um sério risco de termos um novo Maio de 68 quarenta e três anos depois de aquele ter ocorrido, com um movimento de contestação generalizada das instituições. O problema é que o Maio de 68 foi causado pelo aborrecimento da juventude, enquanto que um movimento semelhante seria essencialmente movido pelo desespero. E o desespero nunca foi bom conselheiro.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Durão Barroso à frente do FMI?
Esta notícia de que pode ser Durão Barroso o sucessor de Dominique Strauss-Kahn à frente do FMI é a pior notícia que a União Europeia poderia receber neste momento e, a confirmar-se, terá consequências dramáticas para a Europa pois não estou a ver quem tenha condições de o substituir e aguentar o barco nesta tempestade de crise da dívida soberana. Mas não é nada que os portugueses não tenham já experimentado, pois foi precisamente com a ida de Durão Barroso para Bruxelas que foi abandonado todo o esforço de consolidação orçamental que o seu Governo realizou, inclusivamente contra o próprio Presidente da República, que nos seus discursos não cessava de proclamar que "havia mais vida para além do Orçamento". Essa vida extra-orçamental é que nos levou precisamente ao estado em que estamos.
É por isso péssimo que neste momento se coloque sequer a hipótese de o Presidente da Comissão Europeia abandonar o seu cargo, por muito apelativo que seja o cargo de Presidente do FMI. Os mandatos devem ser cumpridos até ao fim, e a última coisa que neste momento a Europa precisa é de que a Comissão Europeia, como guardiã dos Tratados, fique acéfala no momento em que o projecto europeu atravessa a maior crise de todos os tempos. Sinceramente espero que esta hipótese não se concretize.
Autoria e outros dados (tags, etc)
Justiça para todos.
O caso Dominique Strauss-Kahn constitui um dos mais sérios desafios à credibilidade do sistema de justiça de um país, mas tem que se reconhecer que o sistema de justiça americano, com todas as imperfeições que o caracterizam, tem sabido superar o teste. Na verdade, o que se está a demonstrar é que na América é possível uma simples empregada de hotel acusar de agressão sexual um dos homens mais poderosos do mundo, e que ninguém hesita em avançar com o processo, deter o suspeito na primeira classe do avião e tratá-lo como qualquer outro suspeito de crime é tratado pelos tribunais americanos. Podemos criticar o facto de se exibirem imagens do suspeito algemado, mas a verdade é que essas imagens ocorrem todos os dias em relação a centenas de suspeitos. E os americanos levam muito a sério a regra de que a lei é igual para todos, pelo que seria absolutamente inconcebível darem tratamento diferente a quem quer que seja.
Pelo contrário, a reacção europeia demonstrou um enorme calculismo e uma profunda falta de sentido da realidade, tratando um processo criminal como um caso político. Primeiro, discutiu-se a possibilidade de ele ser ou não candidato às presidenciais francesas depois deste caso, como se o destino da esquerda francesa dependesse apenas da sua candidatura. Depois, pediu-se silêncio sobre o caso com base na presunção de inocência, como se a presunção de inocência pudesse alguma vez justificar a manutenção nas mais altas funções de um organismo internacional de alguém que foi detido e envolvido num escândalo público desta natureza. O próprio deveria ter-se demitido imediatamente para proteger a instituição a que preside. Mas já passou quase uma semana e ele permanece no cargo. Ora, o FMI deveria consciência dos danos que isto causa à sua própria credibilidade como instituição. E os líderes europeus deveriam perceber que a posição da Europa no mundo não pode ficar dependente do resultado do processo do Senhor Strauss-Kahn, mesmo que ele esteja completamente inocente destas acusações.
Daí a grande diferença entre a Europa e os Estados Unidos. A ideia de que a justiça é igual para todos está inscrita desde o início na consciência americana. No juramento de fidelidade (pledge of allegiance), que as crianças aprendem na escola, elas juram o seguinte perante a sua bandeira: "I pledge allegiance to the flag of the United States of America, and to the republic for which it stands, one nation indivisible, with liberty and justice for all". Esta ideia da união da Nação e da sua capacidade para aplicar a justiça a todos é um dos princípios essenciais da doutrina americana e está profundamente imbuída no espírito de qualquer cidadão americano.
Pelo contrário, a Europa tem assentado num simples jogo de interesses, sem qualquer respeito pelos princípios, parecendo que os dirigentes europeus acham mais importante ter um europeu como presidente do FMI do que a aplicação da justiça a todos. Não admira, por isso, que há uns anos um importante juiz norte-americano me tenha dito singelamente o seguinte. "Eu não acredito na bandeira europeia. Só acreditarei na bandeira europeia, quando vir alguém disposto a dar o seu sangue por ela". Confesso que perante estas declarações me perguntei se de facto haveria muita gente no continente europeu disposta a sacrificar a sua vida por uma Nação europeia. Hoje, o que a crise financeira demonstrou é que a União Europeia é tão ténue que nem sequer os contribuintes de um Estado-Membro aceitam que os seus impostos possam servir para evitar a bancarrota de outros Estados-Membros. Com este espírito nunca a Europa se conseguirá afirmar no mundo.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O desmoronar da União Europeia.
Esta notícia avançada pelo Der Spiegel de que a Grécia se prepara para sair do euro e já elaborou um plano para reintroduzir uma moeda própria representa, a ser verdadeira, a colocação em ruínas do edificio jurídico da União Europeia, que há 60 anos tem vindo a ser paulatina e laboriosamente implementado. Efectivamente, nada está previsto nos Tratados em relação à possibilidade de um Estado-Membro abandonar o euro, estando apenas contemplada a possibilidade de saída da União Europeia. A concretizar-se esta saída, seria a primeira vez que um Estado-Membro deixaria a União, dado que a prévia saída da Gronelândia nada mais representou que a não aplicação dos Tratados a uma região não europeia governada pela Dinamarca. A saída da Grécia, com o simbolismo de ser o país fundador das raízes da civilização europeia, representaria um sério revés para o projecto europeu, do qual este dificilmente recuperaria.
Tudo isto demonstra que não temos governantes europeus à altura das suas responsabilidades. Quando se assiste a uma profunda crise das dívidas soberanas dos Estados-Membros a resposta a essa crise deveria ser dada pela União Europeia em conjunto. Sucede, porém, que os governantes da União não têm dado a resposta que se impunha à crise, deixando o poder ser exercido pelos governantes dos Estados-Membros mais poderosos. E estes só têm demonstrado tomar em considerar os interesses dos seus cidadãos, até pretendendo castigar os outros Estados-Membros pelas dificuldades financeiras que atravessam, como se essas dificuldades não fossem já castigo suficiente. Assim sendo, a União Europeia de União já não tem nada, não passando de uma soma de egoísmos nacionais.
A saída da Grécia será uma autêntica tragédia grega para a União Europeia. Claro que haverá muitos que aplaudirão e até salientarão que é a solução mais racional do ponto de vista económico. Mas do ponto de vista político, estaremos perante o verdadeiro colapso de qualquer projecto de criar uma União Europeia forte e com influência mundial. O gigante económico europeu deixará de ser um anão para se transformar num micróbio político. É bom que se tenha consciência disso.
Autoria e outros dados (tags, etc)
O novo pacto MFA-Partidos.
Pelo que aqui se pode ver, o célebre acordo entre o Governo e a troika, que alguns entendem dever festejar, constitui um verdadeiro programa de Governo, que vai moldar a política portuguesa nos próximos anos. Parece que esse programa do próximo Governo vai ser assinado pelo actual Governo em funções de gestão e pelos denominados "partidos do arco governamental", que no entanto pertencem a um Parlamento já dissolvido. Ora, estamos a 32 dias das eleições legislativas, das quais se esperaria que saísse um novo Governo e que os eleitores escolhessem entre os diversos programas dos partidos que se apresentam a sufrágio. Essa escolha ficou, porém, altamente condicionada, pois os partidos que subscreverem este acordo assumem todas as medidas dele constantes, deixando assim de governar em pleno para se limitarem a executar o programa desta troika.
Só me lembro de algo semelhante na nossa história recente que foi o primeiro pacto MFA-Partidos, que os principais partidos políticos foram obrigados pelo MFA a assinar nas vésperas das eleições para a Assembleia Constituinte, de 25 de Abril de 1975. Nessa altura, os partidos obrigaram-se a consagrar na Constituição o próprio sistema de órgãos de soberania, com predomínio do Conselho da Revolução, um estatuto autónomo para as Forças Armadas, os principais pontos programáticos da Constituição, e a sua vigência e revisão. Embora posteriormente revisto pelas partes outorgantes, no que veio a constituir o segundo pacto MFA-Partidos, o resultado foi que nos primeiros anos de vigência da Constituição tivemos uma democracia vigiada, sob a tutela militar do Conselho da Revolução.
Salvaguardadas as enormes distâncias com o caso presente, acho que assistimos a um fenómeno semelhante de democracia vigiada. Votem os eleitores o que votarem no próximo dia 5 de Junho, o programa do Governo — e até do Parlamento, pois neste acordo há matérias da sua competência exclusiva — já está definido. Isso só significa que o país deixou de ser soberano, transformando-se num protectorado das instituições financeiras europeias e internacionais. A única coisa que desejo é que, da mesma maneira que nos livrámos do Conselho da Revolução, também nos consigamos livrar futuramente desta inaceitável tutela financeira. Os três anos que nos propõem neste acordo já são excessivos.
Autoria e outros dados (tags, etc)
As propostas da troika 2.
A confirmar-se esta notícia de que a troika se prepara para cortar nas pensões a partir dos 600 euros, estamos perante uma das mais chocantes medidas algumas vez aplicadas em Portugal e que representa uma verdadeira quebra contratual por parte do Estado para com os cidadãos que nele confiaram. Efectivamente, as pensões são na sua maioria contributivas, o que significa que as pessoas têm a pensão em função dos descontos que realizaram durante a sua vida. Reduzir arbitrariamente o valor dessa pensão constitui uma clara violação dos direitos das pessoas e um grosseiro desrespeito pelas contribuições que realizaram ao longo da sua vida.
O que me deixa absolutamente perplexo é que não sejam estas propostas da troika o assunto fundamental da discussão pública neste período eleitoral e se opte antes por discutir fait divers, parecendo que se julga que vamos ter uma campanha eleitoral normal. Engana-se quem julga que umas eieições neste período podem ser conduzidas com base numa boa campanha de marketing político. É que não há marketing político que apague a dura realidade que se vai abater sobre nós amanhã. O que precisamos neste momento é de política no bom sentido do termo