House of Cards na eleição presidencial americana.
Discordo parcialmente desta excelente análise do Pedro. Não há qualquer dúvida de que a forma como estão a decorrer estas eleições está a pôr à prova o regime constitucional americano, do qual já ouvi alguém dizer que vive no séc. XXI com uma constituição do séc. XVIII. É de facto espantoso que um estado como o Nevada, cuja população não chega aos três milhões de habitantes, possa estar há quatro dias a contar votos, quando em Portugal, que tem dez milhões de habitantes, a contagem leva no máximo quatro horas. Desiludam-se, porém, aqueles que pensam que a constituição americana irá ser mudada por causa destas eleições.
Efectivamente, essa constituição representa um equilíbrio entre estados muito diversos e que não é fácil alterar. Na verdade, as emendas à constituição americana necessitam de aprovação nas duas câmaras do Congresso e ratificação por três quartos dos estados e em caso algum a maioria dos estados aceitará a modificação deste sistema eleitoral, mesmo que ele permita que o candidato com menos votos populares ganhe a presidência. Na verdade, a maioria da população americana concentra-se em onze estados, os quais chegariam sempre para eleger um presidente, e nunca os outros 39 estados aceitariam que isso acontecesse. Por isso, ou se ganha no colégio eleitoral, ou não há hipótese de conseguir a presidência. Al Gore e Hillary Clinton sentiram essa dura realidade, quando tiveram mais votos na população eleitora, mas foram logo a seguir relegados para o esquecimento.
É um facto que este sistema abre as portas à fraude, pois não é necessário falsificar as eleições em todo o país, bastando que a falsificação ocorra nalguns estados decisivos, que até podem ter sistemas de controlo eleitoral muito frágeis. Consta que foi isso que ocorreu na eleição de Kennedy contra Nixon, em que a Máfia, liderada por Sam Giancana, que chamava a Kennedy "o nosso homem na Casa Branca", poderá ter despejado sacos de votos nalguns distritos eleitorais, suficientes para que Kennedy conseguisse a vitória. É verdade que Nixon reconheceu imediatamente a derrota, mas apenas porque foi aconselhado a fazê-lo. Ao que consta o partido republicano ter-lhe-á dito: "Toda a gente sabe que tu ganhaste e que esta eleição te foi roubada mas, se não reconheces a derrota, não terás qualquer futuro político, pois ficarás para sempre com a imagem de mau perdedor. Se, no entanto, reconheceres a derrota, como o partido sabe que ganhaste, poderás voltar a concorrer". E assim Nixon tornou-se o único candidato derrotado a concorrer de novo, tendo em 1968 finalmente sido eleito Presidente.
Neste caso, porém, não há qualquer fraude eleitoral em curso, mas apenas uma estratégia de Trump que na noite das eleições percebeu perfeitamente que tinha perdido nos estados decisivos pois, embora estivesse à frente no voto presencial, não tinha margem suficiente para evitar a previsível viragem quando fossem contados os votos por correspondência. Por isso anunciou que iria recorrer aos tribunais para parar a contagem. Não se pense, porém, que essa é uma estratégia inconsequente, uma simples birra de mau perdedor, pois se Biden não conseguir, devido a processos, impugnações, etc, por parte de Trump, que os estados reconheçam que teve 270 votos no colégio eleitoral, não será considerado como Presidente eleito, mesmo que tenha mais delegados do que Trump. Nessa altura a eleição do Presidente será feita pela Câmara dos Representantes e a do Vice-Presidente pelo Senado. Só que, embora os democratas tenham maioria na Câmara, a Constituição estabelece que, para efeitos da eleição do Presidente, a votação é feita por Estados, tendo apenas um voto os representantes de cada Estado. Como os republicanos têm mais estados do que os democratas, poderia assim Trump ser eleito por esta via.
Não julgo que isso vá acontecer, uma vez que era preciso que os tribunais não resolvessem adequadamente as impugnações que Trump irá lançar e acho que o farão rapidamente e de forma muito eficaz, pelo que o colégio eleitoral acabará por ter maioria suficiente para votar a eleição de Biden. Agora, que a estratégia de Trump é essa, julgo ser evidente. Parece-me que estamos a assistir a um episódio da célebre série House of Cards, só que desta vez não é ficção, é realidade.