O descrédito das instituições.
"Remember, remember, the 7h of November". Nesse dia, depois de buscas ao seu gabinete e de se saber que iria ser autonomamente investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça, o Primeiro-Ministro comunicou ao país o seguinte: "A dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com a suspeita de qualquer acto criminal. Obviamente apresentei a demissão ao senhor Presidente da República (…). A minha demissão foi aceite pelo Presidente da República. Porventura quererá ponderar a partir de que data produz efeitos a minha demissão".
Ontem o Presidente da República anunciou ao País que as eleições seriam a 10 de Março e que só para Dezembro aceitaria a demissão do Governo, para garantir a aprovação do Orçamento de Estado. O problema, no entanto, é que, segundo uma comunicação oficial do Primeiro-Ministro ao País, a demissão já foi aceite e portanto o Governo está demitido (art. 195º, nº1, b) da Constituição). Ora, quando o Governo é demitido, caducam todas as propostas de lei que apresentou ao Parlamento (art. 167º, nº6, da Constituição), incluindo naturalmente a do Orçamento de Estado. O que tem toda a lógica, pois não faz sentido que um Governo demitido condicione o Governo que lhe vai suceder, ainda mais durante todo o ano, que é o tempo da vigência do Orçamento de Estado, e com medidas altamente controversas, como a subida do IUC, que nunca deveriam vir de um Governo demitido.
O que o Presidente fez, segundo Reis Novais, foi uma fraude à Constituição. Eu acho mais do que isso. Acho que há um desrespeito flagrante da Constituição por quem tinha o dever de a defender, o qual coloca o País numa situação altamente complexa. Temos um Governo envolvido num escândalo de corrupção e um Primeiro-Ministro investigado no Supremo Tribunal de Justiça, que por isso se demitiu. Mas o Governo vai continuar na plenitude de funções durante meses, como se nada se tivesse passado. Se isto não é uma República das Bananas, não sei o que será uma República das Bananas. Numa altura em que deveríamos festejar os 50 anos do regime democrático, as nossas instituições caíram num descrédito total, não só aos olhos dos Portugueses, mas também da comunidade internacional.
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Mensagens de Natal.
O dia de Natal trouxe-nos anúncios de prendinhas no sapatinho, só que mais uma vez não nos vão ser destinadas mas sim ao Estado, que continua a tratar os cidadãos como o Xerife de Nottingham, confiscando abruptamente os seus bens e rendimentos. E nem no dia de Natal as pessoas podem ficar sossegadas.
Em primeiro lugar, e como se esperaria, Cavaco Silva esteve-se mais uma vez nas tintas para os novos cortes de salários e a escandalosa tributação das pensões via contribuição especial de solidariedade e não vai suscitar o Orçamento a fiscalização preventiva. Nada que não se esperasse em face do seu comportamento nos anos anteriores. O que já espanta é a singeleza da explicação aqui dada: "A Presidência não comenta, uma vez que não há nenhuma decisão presidencial". Deixar passar o prazo para recorrer ao Tribunal Constitucional não resultou assim de nenhuma decisão presidencial. Será porventura fruto de esquecimento ou distracção?
Quanto ao Primeiro-Ministro, acaba de declarar que vai usar "todos os instrumentos" à sua disposição para cumprir o programa de resgate. O que isto significa é que agora vale tudo até Junho de 2014. Não se sabe o que aí vem, mas as perspectivas são muito sombrias, até porque, como tive ocasião de sustentar aqui, não é nada tranquilizadora a decisão do Tribunal Constitucional sobre os cortes de pensões.
É gravíssimo termos um regime constitucional em que um Governo pode fazer tábua rasa dos direitos adquiridos das pessoas, sem que surja qualquer controlo, seja do Presidente da República, seja dos tribunais a impedir esses desmandos. Nem o Estado Novo alguma vez foi tão longe. No seu exílio no Brasil, confrontado com as medidas do PREC, Marcello Caetano proclamava que no seu regime "nunca houve confisco de bens fosse a quem fosse — e a Constituição, aliás, proibia-o". Acrescentava ainda que "sempre se respeitaram os direitos adquiridos à reforma pelos funcionários civis ou militares punidos por motivos políticos" (Minhas Memórias de Salazar, p. 418). Vivia-se então em ditadura. Mas o actual regime constitucional, que proclama ser um Estado de Direito, não apenas tem admitido o confisco de salários e pensões, com o beneplácito do Tribunal Constitucional, como nem sequer precisa de perseguir politicamente e punir os funcionários públicos para lhes retirar os seus direitos adquiridos às pensões.
Na sua célebre Quinta Emenda, a Constituição Americana estabelece que "no person shall be (…) deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation". Entre nós, também o art. 62º da Constituição garante a todos o direito à propriedade privada, e só admite a requisição e a expropriação por utilidade pública com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização. Até quando continuaremos a desrespeitar desta forma os direitos fundamentais dos cidadãos?
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O desvio colossal às regras constitucionais.
Primeiro parece que queriam uma receita adicional de 800 milhões de euros já em 2011. Agora parece que já vão em 1600 milhões. Amanhã provavelmente já serão 3200 milhões e o Estado lá continuará a aumentar em progressão geométrica os impostos sobre os contribuintes exangues, sem qualquer resultado visível à vista, pois o mais provável efeito deste regabofe fiscal será o aumento da recessão e a inerente quebra da receita fiscal, com a impossibilidade de cumprimento dos défices previstos.
É evidente que este novo imposto é constitucionalmente proibido, uma vez que a Constituição veda expressamente os impostos com natureza retroactiva. O Governo conta, porém, com a jurisprudência complacente do Tribunal Constitucional, que nos últimos tempos tem deixado passar medidas fiscais semelhantes, embora não com a gravidade desta. Neste caso, vai criar-se um precedente que consiste no seguinte: sempre que se verifique que o Estado gastou acima do que está orçamentado, está autorizado a criar um imposto extraordinário retroactivo para cobrir esses gastos excessivos. O respeito pelos orçamentos aprovados pelo Parlamento e a responsabilidade financeira dos titulares de cargos públicos são assim de uma penada atirados para o lixo, uma vez que se houver desvios ao orçamento, há sempre a possibilidade de lançar impostos extraordinários para os cobrir. Em consequência, o princípio da legalidade fiscal e a protecção da confiança dos contribuintes deixam igualmente de existir no nosso ordenamento jurídico. Os direitos dos cidadãos estão neste momento sacrificados a um Estado despesista, incapaz de controlar a sua voragem fiscal. As pessoas ficam hoje a saber que em qualquer momento os seus rendimentos podem ser retroactivamente tributados, sendo-lhes ordenado o pagamento imediato de novos impostos. O Xerife de Nottingham não faria melhor.
Claro que há sempre um processo fácil de justificar este regabofe fiscal que agora passa a caracterizar o Estado Português: é de dizer que a culpa é do Governo anterior. Já estamos habituados a que cada novo Governo ensaie este discurso justificativo, mas que nunca se traduz em acusações concretas, com a exigência das competentes responsabilidades legais, caso elas efectivamente existam. Este discurso só serve para exigir novos sacrifícios a quem não tem culpa nenhuma nesta situação. Os únicos que pagam o despesismo incontrolável do Estado são os contribuintes, a quem são cada vez mais exigidos novos e incomportáveis sacrifícios, neste caso numa flagrante inconstitucionalidade. Ora, o Estado continua a ser o mesmo, independentemente da mudança de Governo, não sendo aceitável que cada novo Governo possa lançar retroactivamente novos impostos, alterando completamente o enquadramento fiscal em que os cidadãos vivem e trabalham.
Não sei se é apenas Portugal que vai colapsar, ou se vai ser a Europa no seu conjunto. O que sei é que com medidas destas a confiança dos cidadãos nas suas instituições, essencial ao bom funcionamento do regime democrático, está totalmente posta em causa.
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A Constituição e a crise financeira.
<<Na minha opinião, a medida de redução de salários decretada no Orçamento para 2011 viola grosseiramente a Constituição. Não me espantam por isso as inúmeras acções e providências cautelares que têm surgido e irão continuar a surgir contra essa medida. O que me espanta são os argumentos que têm sido usados no espaço público contra a sua apreciação judicial, que parecem ignorar todas as regras jurídicas vigentes em Portugal>>.
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A revisão do preâmbulo da Constituição.
Um dos maiores disparates estratégicos aguma vez realizados pelo PSD foi desencadear a abertura de um processo de revisão constitucional na altura da maior crise nacional dos últimos 25 anos. O resultado é que o Parlamento fica entretido em discussões esotéricas, fazendo a sua actividade passar completamente ao lado da gravíssima situação económica, social e política em que o País se encontra. Isto só descredibiliza o Parlamento e faz as pessoas duvidarem da possibilidade de construção de uma alternativa séria de Governo.
Um exemplo do que estou a referir é a discussão em torno do preâmbulo da Constituição. Qualquer aluno do primeiro ano de Direito sabe que um preâmbulo de um diploma não tem nenhum valor normativo. Parece, porém, que os deputados do CDS e um deputado do PSD acham que o mesmo tem uma importância transcendental e propõem a sua eliminação ou revisão imediata. A este propósito até se argumenta que os investidores podem deixar de investir em Portugal ao saber que está no preâmbulo da Constituição que Portugal caminha para uma sociedade socialista. Como é que nós não nos tínhamos lembrado desta? É preciso corrigir rapidamente o malvado preâmbulo e fazer distribuir imediatamente o novo texto pelos nossos assustados investidores, desde a China à Venezuela, passando por Timor-Leste, por Angola e pelo Brasil.
Para ajudar nesta patriótica e urgente tarefa, deixo já aqui a minha própria proposta de revisão do preâmbulo da Constituição de 1976:
"A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas (…) [mudou] o regime (…).
[Mudar] (…) Portugal (…) representou o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa.
(…) Os legítimos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição (…)
A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de Abril de 1976, aprova e decreta a seguinte Constituição da República Portuguesa: [Infelizmente, no entanto, a referida Assembleia encheu este preâmbulo de palavreado ideológico que, durante 35 anos e apesar da longa resistência do povo português, pôs em risco a imagem do País perante os investidores internacionais. Posteriormente, graças ao esforço concertado de alguns heróicos deputados, a quem a Pátria fica eternamente grata, esse assustador palavreado pôde finalmente ser expurgado, permitindo a Portugal obter novos e volumosos investimentos estrangeiros].
Acho que, depois deste novo preâmbulo, a Pátria poderá ser salva, pois os juros da dívida nunca mais voltarão a subir. Oops!
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Taxed Enough Already.
Conforme seria de esperar, depois das inevitáveis pressões externas, lá recomeçou o tango das negociações em torno do Orçamento de Estado. A ninguém interessa que o Orçamento seja péssimo e que esta equipa das Finanças não tenha já a mínima credibilidade para assegurar sequer a sua execução. Mas como irresponsavelmente se proibiu na Constituição o Presidente de dissolver a Assembleia nos últimos seis meses do seu mandato, é impossível neste momento refrescar a legitimidade política do Parlamento e do Governo. Daí que a tentação de deixar tudo no mesmo seja muito grande.
Devo dizer que fazer negociações com o Governo nesta altura me parece errado, porque tem por efeito co-responsabilizar o PSD por este orçamento. Estas negociações acabaram afinal por revelar que a diferença entre o PS e o PSD se resume a uns trocos nas deduções fiscais ou no IVA do leite com chocolate. Como é que o PSD, depois do discurso no Pontal em que proclamou não aceitar aumentos de impostos, pode afinal depois limitar a sua divergência a questões menores? Este Orçamento vai ter uma redução drástica dos salários dos funcionários públicos, o estabelecimento de um tecto máximo para as deduções com despesas de saúde, o aumento brutal das taxas do IRS e o do IVA, e o congelamento das reformas, mas estas medidas não merecem uma única crítica do principal partido da oposição, parecendo considerar-se normal que o Estado trate assim os seus cidadãos.
Nesta proposta de Orçamento, o Estado não demonstra qualquer controlo na sua despesa, insistindo em obras faraónicas, parcerias público-privadas, institutos públicos inúteis (salvo os já extintos) e outros gastos desnecessários. Ao contrário do que tem sido dito, toda a consolidação orçamental se está a fazer essencialmente por via da receita, e especialmente a partir do aumento do IVA, o que terá consequências económicas drásticas. Já as propugnadas reduções de despesa são meramente aparentes. A redução de salários é absolutamente equivalente a um imposto sobre os rendimentos de trabalho dos funcionários públicos. A redução da despesa fiscal não passa de uma eliminação da personalização do IRS, fazendo os doentes pagar imposto mesmo quando não têm rendimento disponível. E por aí adiante.
Não deveria, pelo contrário, o Estado reduzir a sua dimensão em ordem a evitar este brutal aumento de encargos aos cidadãos? Estaremos condenados a viver num país em défice permanente, que necessita para sobreviver de se endividar no exterior, cada vez a juros mais altos? Há quantos anos é que Portugal não tem um orçamento equilibrado? É bom que as pessoas percebam que, a continuarmos assim, iremos de PEC em PEC numa espiral de endividamento e tributação, uma vez que a dívida de hoje são os impostos de amanhã.
Mas, para além do inevitável acordo com o PSD, choca-me a passividade do Presidente da República, que aliás tinha em tempos idos escrito um artigo a qualificar este Estado despesista como "o Monstro". Se bem me lembro, Cavaco fez neste mandato três comunicações ao país, uma sobre o Estatuto dos Açores, outra sobre a segurança informática dos seus computadores, e uma última sobre o casamento homossexual. Mas perante as evidentes dúvidas de constitucionalidade das medidas do PEC 2, que aumentou retroactivamente as taxas do IRS, preferiu solicitar apenas uma fiscalização sucessiva do diploma, colocando a questão no limbo. É provavelmente o que irá acontecer também com as evidentes suspeitas de inconstitucionalidade do Orçamento para 2011, pelo menos no que respeita à redução de salários. E aí pode perguntar-se por que há-de estar empenhado o Parlamento numa revisão constitucional, quando pelo menos em matéria fiscal a Constituição é completamente esquecida.
Devo dizer, por isso, que compreendo perfeitamente o sucesso da mensagem simples do Tea Party americano: Cumpra-se a Constituição, reduza-se o peso do Estado e alivie-se a carga fiscal dos contribuintes, que já são suficientemente tributados. Taxed enough already! Da minha parte também estou disposto a renunciar a isto tudo. Não vejo é que o Orçamento do Estado para 2011 aponte nesse sentido.